Ana Elizabeth Lapa Wanderley Cavalcanti[1]
O direito ao planejamento familiar permite que uma pessoa receba informações adequadas e suporte técnico para decidir sobre a formação de sua família, procriação e métodos contraceptivos. O tema interage com conceitos como dignidade da pessoa humana, direitos humanos, direito à saúde e bem-estar, além da efetivação do direito à sexualidade, direitos reprodutivos e autonomia da vontade, demonstrando-se como uma questão relacionada diretamente ao estudo do biodireito e da bioética.
Ressalta-se que a Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948, no seu artigo 12, sustenta que: “Ninguém será sujeito à interferência na sua vida privada, na sua família, no seu lar ou na sua correspondência, nem a ataque à sua honra e reputação. Todo ser humano tem direito à proteção da lei contra essas interferências ou ataques” (grifos nossos). Assim, pode-se defender que toda pessoa tem direito e autonomia em relação à formação da sua família.
É fato que a procriação não é elemento essencial para a formação de uma família, mas faz-se necessário assegurar àqueles que queiram ter filhos, o direito à formação familiar por meio da procriação seja natural ou artificial, de forma medicamente assistida, bem como o direito a não procriar, para aqueles que não pretende tê-los, como forma de respeito, também, ao direito à intimidade e à dignidade da pessoa.
Portanto, é importante entender que o direito ao planejamento familiar é sim um direito humano, um direito fundamental e um direito da personalidade, sendo que, seu exercício pode ser determinante para que um indivíduo alcance seu bem-estar e sadia qualidade de vida.
Contudo, numa sociedade em rede e informatizada, como a que se apresenta hoje, a informação é essencial para que o cidadão possa tomar suas decisões de forma consciente. Assim, quando se fala em direito ao planejamento familiar, faz-se necessário que o Estado ofereça adequadamente, por meio de Políticas Públicas eficazes, informações para que o indivíduo possa decidir sobre métodos de concepção e contracepção, bem como o tipo de família que pretende constituir. Entretanto, é necessário também dizer que, o planejamento familiar não deve ser confundido com controle de natalidade, não cabe ao Estado decidir se o individuo pode ou não ter filhos, quantos filhos terá e assim por diante.
Assim, é imprescindível que as decisões tomadas por uma pessoa sobre ter ou não filhos, por exemplo, sejam livres, ponderadas, conscientes e decididas com autonomia, afinal, a família é um meio para a busca da felicidade, realização pessoal e bem-estar, além da formação da personalidade do sujeito.
Em relação à legislação brasileira sobre o tema, importante dar destaque à Constituição Federal de 1988 que, trata no seu art. 226 § 7º:
§ 7º Fundado nos princípios da dignidade da pessoa humana e da paternidade responsável, o planejamento familiar é livre decisão do casal, competindo ao Estado propiciar recursos educacionais e científicos para o exercício desse direito, vedada qualquer forma coercitiva por parte de instituições oficiais ou privadas. (grifos nossos)
Por outro lado, o art. 1565 do Código Civil determina no seu § 2º que:
§ 2º. O planejamento familiar é de livre decisão do casal, competindo ao Estado propiciar recursos educacionais e financeiros para o exercício desse direito, vedado qualquer tipo de coerção por parte de instituições privadas ou públicas. (grifos nossos)
E, além da Constituição Federal e do Código Civil, a questão do planejamento familiar é tema também de lei, trata-se da Lei de Planejamento Familiar n. 9.263/1993
Art. 1º O planejamento familiar é direito de todo cidadão, observado o disposto nesta Lei.
Art. 2º Para fins desta Lei, entende-se planejamento familiar como o conjunto de ações de regulação da fecundidade que garanta direitos iguais de constituição, limitação ou aumento da prole pela mulher, pelo homem ou pelo casal.
Verifica-se, portanto, que a legislação brasileira claramente reconhece o direito ao planejamento familiar, deixando para o Estado apenas a condição de educador e facilitador para o exercício desse direito, como forma de se reafirmar o direito ao planejamento familiar como um direito individual e fundamental.
Contudo, em que pese os artigos acima mencionados afirmarem expressamente o direito ao planejamento familiar, também dão a visão de que o planejamento, quando se é casado, é uma decisão do casal. Neste sentido, faz-se necessária a análise do significado deste comando atualmente.
Se o direito a ter ou não filhos, exercido por meio do direito ao planejamento familiar, é tido como um direito fundamental, que como já foi dito anteriormente, considerado como um direito ao desenvolvimento da própria personalidade, como entender hoje que a decisão deva ser do casal?
Tal questão foi muito discutida durante anos, fato que se entende, uma vez que a Lei n. 9263/1996 determinava que se não houvesse a anuência de um dos cônjuges não era possível fazer a esterilização cirúrgica como mecanismo de contracepção (art. 10§ 5º).
Felizmente, essa postura de vincular a esterilização cirúrgica tanto do homem como da mulher, quando casados, à anuência do cônjuge, foi revogada pela Lei n. 14.443/2022 que reconheceu a autonomia da vontade individual da pessoa que pretende ou não ter filhos, não vinculando essa vontade à autorização de seu cônjuge.
A mencionada Lei n. 14.443/2022, fez alterações importantes na Lei de 1996, além da questão da autorização do cônjuge, reconheceu ser possível a cirurgia de esterilização da mulher durante parto, desde que observadas as condições previstas na lei e as condições médicas. E, também, permitiu que a cirurgia seja realizada em pessoas maiores de 21 anos e não maiores de 25 como determinava a lei anterior.
Finalmente, importante também salientar que o direito ao planejamento familiar é parte integrante do direito à saúde e como tal deve ser garantido e oferecido no Sistema Único de Saúde (art. 3º) que, por sua vez, deve zelar pela orientação aos cidadãos por ações preventivas e educativas e pela garantia de acesso igualitário a informações, meios, métodos e técnicas disponíveis para a regulação da fecundidade (art. 4º), como por exemplo, métodos de concepção e contracepção.
Portanto, percebe-se que é objetivo primeiro da lei em comento, que as pessoas possam receber informações e ações adequadas a respeito de métodos de concepção e contracepção como forma de planejar com responsabilidade e autonomia a sua constituição familiar. Não se trata de lei que faz controle de natalidade, mas sim que assegura o acesso às técnicas e informações para a procriação, se assim for o desejo do indivíduo.
Concluindo, o planejamento familiar é um direito importantíssimo para assegurar aos cidadãos o exercício da sua autonomia e que possam definir de forma consciente se querem ou não ter filhos, quando tê-los, tendo informações sobre técnicas de concepção e contracepção, controle de doenças sexualmente transmissíveis, esterilização, controle e prevenção de câncer, com toda a assistência necessária provida pelo Estado para alcançar seus objetivos, bem como atendimento pré-natal, de parto e pós-parto. A alteração legal, que entrou em vigor agora em março de 2023, advinda da Lei n. 14.443 de 2022, mostrou-se um avanço no tema, mas ainda há muito a ser feito. Importante que tenhamos Políticas Públicas adequadas para a efetivação desse direito.
Referências
FEIRE DE SÁ, Maria de Fátima e NAVES, Bruno Torquarto de Oliveira. Bioética e Biodireito. Del Rey, Belo Horizonte, 2018.
MADALENO, Rolf. Curso de Direito de Família. Gen Editora, Rio de Janeiro, 2013.
[1] Mestre e doutora em Direito Civil pela PUC de São Paulo. Professora dos cursos de Graduação em Direito das Faculdades Metropolitanas Unidas – FMU e da Universidade Presbiteriana Mackenzie.