Por Anna Caramuru

No final de fevereiro de 2023, os animais tiveram uma vitória importante no Brasil: o Conselho Nacional de Controle de Experimentação Animal (CONCEA), do Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação (MCTI), proibiu, por meio da resolução n. 58/2023, a utilização de animais em pesquisa, desenvolvimento e controle de cosméticos, produtos de higiene pessoal e perfumes.

Segundo a normativa, portanto, animais vertebrados – que são comprovadamente sencientes, ou seja, capazes de experimentar dor e prazer de modo consciente, como peixes, anfíbios, répteis, aves e mamíferos – deixam de poder ser utilizados em pesquisas quando já haja comprovação de segurança e eficácia dos ingredientes e compostos em questão. Havendo fórmulas novas, contudo, a norma impõe a utilização de métodos alterativos à experimentação animal.

Com isso, no mais, o Brasil passa a se alinhar às normas da União Europeia, na qual vige a Teoria dos três R’s de William Russell e Rex Burch (1959): “Reductions, Replacemente, e Refinement” (Redução, Substituição e Refinamento):

O princípio da redução tem como corolário basilar que o recurso a animais para experimentação só pode ser levado a cabo quando não for possível outro método cientificamente satisfatório que não implique a utilização animal.

O princípio do refinamento, por seu turno, visa a redução do número de ensaios com animais e do número de animais aí utilizados e, simultaneamente, assegurar um mínimo de dor, sofrimento e aflição dos animais utilizados durante a experimentação.

O princípio da substituição, por último, visa a substituição progressiva de experimentações com animais por procedimentos de investigação em que o recurso a animais seja mínimo ou, desejavelmente, nulo (FERREIRA; PEREIRA, 2019, p. 45)

Para além dos avanços éticos possibilitados pela resolução n. 58/2023, é importante destacar que mesmo a credibilidade da experimentação animal já vem sendo, no âmbito científico, questionada.

Paula Brügger (2008), por exemplo, afirma que já são diversos os cientistas que criticam a vivissecção (que é a prática de cortar um corpo vivo). Primeiro, porque existe, é claro, um problema ético em se sacrificar interesses e direitos de animais em detrimento de interesses e direitos de humanos, apenas porque pertencemos a espécies diferentes (SINGER, 2015; FRANCIONE, 2020). Contudo, existe, também, uma questão relevante que diz respeito à falta da confiabilidade nos resultados.

Como exemplo, nos Estados Unidos, apenas 1% dos novos medicamentos testados em laboratórios vão para o estágio clínico, em que são, finalmente, testados em voluntários humanos e, após, somente 5% deles são aprovados pela FDA (Food and Drug Administration). Outra pesquisa revelou que 51,5% das drogas aprovadas ofereciam riscos não previstos nos testes. A talidomida, por exemplo, foi aprovada e, nos testes realizados em animais, não apresentou problemas. Em mulheres humanas grávidas, contudo, os problemas causados aos fetos foram seríssimos (BRÜGGER, 2018; BERNARD; KAUFMAN, 1997; GREEK; GREEK, 2000).

Com relação à AIDS, os modelos com animais trouxeram benefícios apenas para os primatas não humanos, ou seja, os pesquisadores que trabalham com primatas fizeram descobertas importantes para tratar de chimpanzés, mas que eram inaplicáveis a seres humanos (GREEK; GREEK, 2000; BRÜGGER, 2018).

Já com relação ao câncer, igualmente, nenhuma droga essencial para o tratamento da doença foi originada de modelos animais, de modo que os medicamentos desenvolvidos foram testados em animais tão somente após já haver pistas sobre suas possibilidades terapêuticas com base em dados obtidos clinicamente. Isso se dá porque, apesar de a cada ano milhares de animais sofrerem nas mãos de cientistas que induzem, neles, formações cancerosas, tais formações são totalmente distintas das formas de câncer humano que ocorrem naturalmente, uma vez que as células cancerosas não podem ser vistas desvinculadas do organismo que as produziu (GREEK; GREEK, 2000; BRÜGGER, 2015).

O que Brügger afirma, portanto, é que os animais não humanos, muito embora tenham, todos, origens comuns, inclusive conosco, são muito diferentes entre si e de nós em aspectos relevantes – que envolvem fatores metabólicos, anatômicos, bioquímicos, comportamentais etc. –, e é por isso que os resultados são falhos (BRÜGGER, 2018).

Novamente, não podemos deixar de lado as implicações éticas de causarmos sofrimentos a seres que sabemos serem capazes de experimentar, conscientemente, a dor, de modo que, ainda que o modelo animal da pesquisa científica se provasse eficaz – o que não é o caso –, não haveria justificativas para utilizá-lo.

Já existe um consenso científico no sentido de que animais humanos não são os únicos que têm consciência. Diversamente, como constatado na Declaração de Cambridge sobre a Consciência Animal[1] de 2012, “o estudo da neurociência evoluiu de tal modo que não é mais possível excluir mamíferos, aves e até polvos do grupo de seres vivos que possuem consciência” (HOHENDORFF; LAZZARETTI, 2022, p. 217). Deste modo, é possível afirmar que, na medida em que animais possuem senciência, “são, sem dúvida alguma, dotados de consciência e capazes de sentir dor. Deste modo, não podem mais ser considerados apenas como coisas pelo direito” (Idem, p. 207).

Mesmo nossa Constituição Federal já reconhece a senciência de animais não humanos e proíbe a crueldade contra eles, o que fica claro pela leitura do artigo 225, inciso VII, §1º:

§ 1º Para assegurar a efetividade desse direito, incumbe ao Poder Público: VII – proteger a fauna e a flora, vedadas, na forma da lei, as práticas que coloquem em risco sua função ecológica, provoquem a extinção de espécies ou submetam os animais acrueldade (grifei)

Verifica-se, na norma acima transcrita, duas regras de proibição, distintas entre si: (1) práticas que coloquem em risco a função ecológica da fauna e da flora, e provoquem a extinção de espécies; ou (2) submetam os animais, enquanto indivíduos, à crueldade.

Em nosso ordenamento jurídico, portanto, a posição de animais não humanos como sujeitos de direitos fundamentais já está garantida, uma vez que eles não são protegidos apenas como mera parte da fauna, mas sim, como seres em si mesmos, aptos a serem vítimas de crueldade, experimentando o sofrimento (ATAÍDE JR., 2020). Com isso, eles devem ter não somente o direito de viver, como o direito de viver sem dor e crueldade (MEDEIROS; NETTO; PETTERLE, 2016).

É esse, de mais a mais, o posicionamento que vem sendo adotado pelo Supremo Tribunal Federal (STF), como se verifica na ADI 2.514 do Estado de Santa Catarina (2005), ADI n. 3.776-5 do Estado do Rio Grande do Norte (2007), ADI n. 1.856 do Estado do Rio de Janeiro (2011), o RE 153.531/SC de 1998, e a famosa ADI da Vaquejada, de n. 4.983 de 2016, na qual não só a senciência foi reconhecida, como a própria dignidade animal, como se verifica pelo voto da Ministra Rosa Weber:

A Constituição, no seu artigo 225, § 1º, VII, acompanha o nível de esclarecimento alcançado pela humanidade no sentido de superação da limitação antropocêntrica que coloca o homem no centro de tudo e todo o resto como instrumento a seu serviço, em prol do reconhecimento de que os animais possuem uma dignidade própria que deve ser respeitada (destaquei).

Por último, é importante destacar que já existem alterativas à experimentação animal, mas é preciso trabalhar para que outros modos de produzir e testar medicamentos e procedimentos médicos sejam cada vez mais eficazes e éticos.

Referências

ATAIDE JUNIOR, Vicente de Paula. A afirmação histórica do Direito Animal no Brasil. Revista Internacional de Direito Ambiental. v. 8, n. 22, jan.-abr. 2019

BERNARD, Neal; KAUFMAN, Stephen. Animal research is wasteful and misleading. Scientific American, 1997.

BRÜGGER, Paula. Vivissecção: fé cega, faca amolada? In: MOLINARO, Carlos Alberto; MEDEIROS, Fernanda Luiza Fontoura de; SARLET, Ingo Wolfgang; FENSTERSEIFER, Tiago (orgs.). A dignidade da vida e os direitos fundamentais para além dos humanos: uma discussão necessária. Belo Horizonte: Fórum, 2008, p. 145-174.

FRANCIONE, G. L Why Veganism Matters: The Moral Value of Animals. New York: Columbia University Press, 2020.

GREEK, Ray C.; GREEK, Jean S. Sacred cows and golden geese: the human cost of experiments on animals. New York: Continuum, 2000.

HOHENDORFF, Raquel von; LAZZARETTI, Bianca. Breves considerações sobre direito e animais silvestres provenientes de centro de triagem de animais silvestres (CETAS) e mantidos sob cuidados humanos. In: BARBOSA-FOHRMANN, Ana Paula; LOURENÇO, Daniel Braga (Orgs.). AUBERT, Anna Caramuru Pessoa (Coord.). Estudos e Direitos dos Animais: teorias e desafios. Porto Alegre, RS: Editora Fi, 2022.

MEDEIROS, F. L. F, NETO, J. W & PETTERLE, S. R. Animais não-humanos e a vedação de crueldade: o STF no rumo de uma jurisprudência intercultural. Editora Unisalle, 2016.

PEREIRA, André Gonçalo Dias; FERREIRA, Ana Elisabete. Novo Estatuto Jurídico dos Animais em Portugal: Direito Civil e Experimentação Animal. Revista Brasileira de Direito Animal, Salvador, v. 14, n. 1, p. 38-53, 2019.

RUSSELL, W. M. S., BURCH R. The Principles of Humane Experimental Technique. London, UK: Methuen, 1959.

SINGER, Peter. Animal Liberation. Fortieth Anniversary Edition. New York: Open Road Integrated Media, 2015.


[1] Cf. https://labea.ufpr.br/portal/wp-content/uploads/2014/05/Declara%C3%A7%C3%A3o-de-Cambridge-sobre-Consci%C3%AAncia-Animal.pdf.

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