MORTE DIGNA EM PERSPECTIVA COMPARADA
Por Thiago Melim Braga
Incontestavelmente, a morte digna é tema que há muito tempo permeia o debate acerca da ciência do direito, da bioética e do biodireito, notadamente na realidade europeia. Há quase 18 anos, Maurice T. Maschino publicava na Le Monde Diplomatique Brasil a matéria intitulada de “A Europa já aceita a morte digna”.
Contextualizando historicamente, a Holanda, após intensos debates e no ano de 2002, legalizou a eutanásia e o suicídio assistido, tornando-se o primeiro país no mundo a possuir legislação permitindo ambas as práticas. A Lei é de 12 de abril de 2001, relativa ao Término da Vida sob Solicitação e Suicídio Assistido e alteração do Código Penal e da Lei de Entrega do Corpo, autorizando a prática da eutanásia e do suicídio assistido.
Da mesma forma que a Holanda, a Bélgica também legislou sobre a questão, em 2002, mas não estabeleceu um limite de idade para que o suicídio assistido fosse realizado, ou seja, há maior liberdade no procedimento (AZEVEDO, 2014), diferente da Holanda que apenas permite que o suicídio assistido em maiores de 12 anos.
A premissa, assim, é a de que a Europa já debate o referido tema faz tempo, mas o debate vem sendo cada vez mais constante naquela realidade e, em especial, tem contribuído para a irradiação do debate em outros lugares do mundo, incluindo a América do Sul.
O tema da morte digna relaciona-se com a religião culminando em pontos de divergência, na maioria das vezes. Entretanto, é preciso contextualizar a morte digna e enfrentar o tema a partir de uma ótica da laicidade, notadamente em termos ocidentais, como se percebe em alguns países da Europa, destacando-se a Espanha e Portugal, este mais recentemente quando comparado àquele.
A morte digna pode ser inicialmente contemplada como o respeito à dignidade na passagem da vida para a morte, respeito aos valores e às crenças de cada indivíduo (LIMA, 2015), razão pela qual o fator da laicidade faz total sentido no debate.
Sob a perspectiva religiosa, a defesa tem de ser pela laicidade do Estado, sendo compreendido como aquele no qual se apresenta a neutralidade, ou seja, não adota uma religião oficial, tampouco se demonstra avesso a determinadas religiões, como observa o artigo do Diplomatique, quando apresenta a questão da legislação avançada, sem oposição religiosa.
Todas as suas formas são respeitadas, assim como a opção por não crer. Logo, para a evolução da discussão jurídica, não se pode considerar qualquer religião, por ser incabível à discussão proposta. Ademais, há países como Portugal, mesmo com forte influência religiosa, em que os debates prosperaram, de 2006 aos dias atuais, não apenas na perspectiva judicial, mas na atividade legislativa e com órgão plural e consultivo como o Conselho Nacional de Ética para Ciência da Vida (CNECV).
A morte digna, além de tema recorrente há alguns anos, é também um tema polêmico, por dividir inúmeras opiniões como exposto acima, bem como apresenta diferentes outras temáticas em seu arcabouço: a eutanásia, a ortotanásia, o suicídio assistido, a distanásia, a mistanásia, os cuidados paliativos, as diretivas antecipadas de vontade e até mesmo a negativa de tratamento ou recusa terapêutica
Assim, por morte digna passou a se entender a possibilidade de pacientes com doenças graves e incuráveis terem acesso a métodos de alívio de sintomas, mas também à possibilidade de escolher pela interrupção da própria vida (DADALTO, 2019, p. 4), o que faz com que os conceitos de eutanásia, ortotanásia e do suicídio assistido sejam também relevantes ao tema e à sua evolução.
Antes, todavia, de adentrarmos nas delimitações necessárias, há princípios basilares da bioética a serem observados, como os da não maleficência, da beneficência, da justiça, da dignidade, da precaução, da vulnerabilidade, da privacidade e da confidencialidade, destacando-se, com maior razão, o da dignidade e ao da autonomia.
A dignidade deve ser compreendida enquanto dignidade da pessoa humana, que se diferencia da dignidade humana. A dignidade da pessoa humana nos remete a uma esfera individual, daquela pessoa, garantindo, portanto, concretude, diferente da dignidade humana que se entende por qualidade que deve ser comum a todos, que ultrapassa uma única pessoa (MIRANDA, 2003, p. 84).
Da mesma forma que a dignidade, a autonomia é outro princípio elementar, para que haja a prestação de consentimento, assumindo a autonomia como um direito do paciente. Diante disso, três são os pilares nos quais se fundam o consentimento: a capacidade de consentir, a informação adequada e o direito de consentir ou a recusar um tratamento.
Com os referidos pressupostos estabelecidos – dignidade, autonomia e laicidade – a vida conceitual na perspectiva da União Europeia, que muito evolui sobre a temática da morte digna, é aquela dotada de dignidade da pessoa humana e não simplesmente uma vida técnico-mecânica, meramente biológica e mantida a todo e qualquer custo, objetificando a pessoa humana e a tratando como mero meio e não como fim em si mesma (KANT, 2007).
Portanto, a base europeia, que aceita a morte digna, também passa pela individualização de conceitos, o que vem sendo estudado e individualizado há anos, como demonstra a publicação de Maurice T. Maschino, em diferentes realidades.
Logo, eutanásia pode ser entendida como o ato de privar a vida de outra pessoa acometida por uma afecção incurável, por piedade e em seu interesse, para acabar com os seus sofrimento e dor. O móvel do agente, portanto, é a compaixão para com o próximo (SANTORO, 2011, p. 117).
Para além, além da eutanásia, ressaltada no texto através da realidade holandesa, o suicídio assistido também vem sendo objeto de destaque, tendo a Suíça como expoente. A definição direta é a abreviação da vida feita pela própria pessoa que está com uma doença grave, incurável ou terminal. Nesse caso, a pessoa é ajudada por outrem (médico ou não), que concede os meios para que possa, por si mesma, abreviar sua vida (DADALTO, 2019, p. 4).
E ainda nessa seara, como mola propulsora dos debates temos também a ortotanásia, etimologicamente, remete à morte no tempo certo, já que orthos, em grego, significa “normal” e, thanatos, “morte” (SÁ; MOREIRA, 2015, p. 87). Para além da construção etimológica, temos o conceito classificado como a suspensão de medicamentos ou o tratamento de um paciente, permitindo o desencadeamento do processo natural da morte (DINIZ, 2010, p. 411).
Destarte, do que fora revelado até o momento, temos em análise, em polos opsotos, os direitos fundamentais à vida e à liberdade (sentido amplo). Contudo, mesmo sabendo que os direitos fundamentais são “trunfos contra a maioria” (NOVAIS, 2006), para uma adequada abordagem, tem-se que a evolução do debate, de forma propositiva pela realidade europeia e que atualmente cresce na realidade americana, também passa pelo sentido de possibilidade de renúncia a um direito fundamental, em sua dupla dimensão: exercício e autorrestrição ao exercício ou ao direito fundamental.
Como esclarecido, o tema da morte digna pode ser observado por um viés de participação da sociedade civil, de atuação do Poder Judiciário (rompendo e provocando a jurisdição) e/ou de lege ferenda, propostas legislativas que fazem com que o tema também evolua.
A Suíça não legalizou a eutanásia, entretanto, o art. 115 do Código Penal Suíço permite a assistência ao suicídio se a pessoa que assiste o faz por “razões não egoístas”. Não é necessário que um médico esteja envolvido. Apesar disso, a prática não é regulamentada no país. A eutanásia, por sua vez, é proibida pelo art. 114 do mesmo Código. Na realidade suíça são entidades como a Exit que impulsionam o estudo e debate da temática.
Por sua vez, a realidade portuguesa vivenciou recentemente cinco projetos de lei que regularizavam a morte assistida e que foram aprovados pela Assembleia da República (órgão legislativo do País) e enviados para a sanção presidencial.
A aprovação da proposta legislativa que aqui analisaremos deu-se em fevereiro de 2021, com o intuito de descriminalizar a eutanásia e o suicídio assistido em determinados casos.
A “Lei João Semedo” foi batizada em homenagem ao médico e deputado português que travou a luta pelo direito à morte assistida e, depois de uma batalha contra um câncer que o fez perder a voz, faleceu em 17 de julho de 2018 (SANTOS, 2018, s/p). Com 136 votos favoráveis, 78 contrários e 4 abstenções, o Parlamento de Portugal aprovou a descriminalização da eutanásia.
Os parlamentares da Casa votaram, no total, 5 propostas, apresentadas por 5 partidos diferentes, acerca da legalização da prática em casos específicos e sob regras estritas, conforme se verifica da Assembleia da República (PORTUGAL, Projeto de Lei 4/XIV/1, 25 out. 2019, online).
Os 5 textos guardam muitas similitudes entre si, cujas aprovações se deram de maneira bastante favorável e confortável, passando por uma transformação em um único projeto de lei, que foi votado, finalmente, e enviado para a promulgação.
O texto desse projeto contempla avanços no tema da morte assistida. A apreciação pelo Presidente Marcelo Rebelo de Sousa gerou expectativas, já que no sistema constitucional português existe a possibilidade de se submeter a questão ao Tribunal Constitucional ou à imposição de vetos.
Em síntese, as propostas apresentadas e votadas estabeleciam que a eutanásia não seria punível no caso de antecipação da morte por decisão da própria pessoa, maior, em situação de sofrimento extremo, com lesão definitiva, de gravidade extrema, conforme o consenso científico, ou doença incurável e fatal, quando praticada ou ajudada por profissionais de saúde.
A evolução do tema na realidade portuguesa foi mais tímida, mesmo com a ação e a militância legislativa de deputados como João Semedo, que deu nome ao projeto final, haja vista a questão religiosa confessional presente no país. Tanto a evolução foi mais lenta do que em outros países europeus que medida semelhante havia sido votada no Parlamento 2 anos antes, e rejeitada.
Não apenas a realidade portuguesa, mas novamente na Holanda, em razão do debate iniciado em 2002 e retomado em 2009 e 2010 por conta de um movimento holandês (Out Free Will), o intuito pretendido é de ampliar o escopo da legislação holandesa sobre morte assistida, de maneira a permitir que o procedimento também seja disponibilizado para pessoas acima de 70 anos que não possuam condição clínica (discussão sobre o cansaço existencial e a pílula da vida completa, completed life pill).
Seja na Holanda, na Bélgica, na Suíça ou na Espanha, o tema é polêmico, e assim permanece. A realidade brasileira não é diferente, em razão do disposto no artigo 122 do Código Penal (induzimento, instigação ou auxílio a suicídio ou a automutilação).
Percebe-se a evolução de temáticas relacionadas à morte digna em território nacional, tais como: testamento vital ou biológico e diretivas antecipadas, negativa de tratamento e/ou recusa terapêutica e cuidados paliativos, mas não especificamente da morte digna.
Outrossim, a questão legislativa avança em sentido contrário ao cenário europeu, através do projeto do Novo Código Penal para o final do capítulo (PLS n. 236/2012), evidenciando que o crime previsto no art. 122 será mantido, ou seja, tipificado como ilícito, mas serão acrescentadas modificações na sua redação, no regime e no quantum da pena. Na realidade, o atual art. 122 passará a ser o art. 123, com algumas alterações em relação aos atuais § 4º, § 5º, § 6º e § 7º, que serão alocados em outros tipos penais próprios.
O art. 122 (da proposta legislativa), por sua vez, conterá dispositivo expresso sobre a tipificação do crime de eutanásia (Matar, por piedade ou compaixão, paciente em estado terminal, imputável e maior, a seu pedido, para abreviar-lhe sofrimento físico insuportável em razão de doença grave: Pena – prisão, de dois a quatro anos).
A evolução na realidade brasileira e mundial é certamente impulsionada pela realidade europeia. Há quem defenda uma solução de lege ferenda, o que não parece simples tendo em vista o projeto exposto acima, ou, ainda, uma interpretação conforme à Constituição de todos os dispositivos atinentes à questão da morte digna, mas também exige cautela, reforçando a não banalização do próprio direito à vida.
Seja através da interpretação conforme, sem ou com redução de texto, seja reforçando o debate sobre o tema, até mesmo para uma evolução legislativa, assim como percebemos na realidade europeia, é preciso debater e evoluir, permitindo que a temática encontre locais e agentes de promoção do debate, como é o caso do blog em questão.
Mesmo após certo lapso temporal, as conclusões de Maurice T. Maschino seguem atuais, no sentido de que o direito de morrer em dignidade deveria ser considerado fundamental, humanamente compreensível, socialmente aceitável e politicamente defensável. Todavia, a pergunta por ele formulada persiste: onde ainda está o problema?
AZEVEDO, Reinaldo. Bélgica aprova eutanásia em crianças. Veja, 13 fev. 2014. Disponível em: http://veja.abril.com.br/noticia/saude/belgica-aprova-eutanasia-em-criancas. Acesso em: 25 jul. 2023.
DADALTO, Luciana. Morte digna para quem? O direito fundamental de escolha do próprio fim. Pensar, Revista de Ciências Jurídicas, Fortaleza, v. 24, n. 3, p. 1-11, jul.-set. 2019. Disponível em: https://periodicos.unifor.br/rpen/article/view/9555. Acesso em: 27 jun. 2023
DINIZ, Maria Helena. O estado atual do biodireito. 7. ed. São Paulo: Saraiva, 2010.
KANT, Immanuel. Fundamentação da metafísica dos costumes. Trad. do alemão Paulo Quintela. Lisboa: Edições 70, 2007
LIMA, Carolina Alves de Souza. Ortotanásia, cuidados paliativos e direitos humanos. Revista da Sociedade Brasileira de Clínica Médica, v. 13, n. 1, p. 14-17, São Paulo, jan.-mar. 2015
MIRANDA, Jorge. A constituição portuguesa e a dignidade da pessoa humana. Revista de Direito Constitucional e Internacional. São Paulo, v. 45, p. 84, out.-dez. 2003.
NOVAIS, Jorge Reis. Perspectivas constitucionais nos 20 anos da Constituição de 1976. Coimbra: Coimbra, 1996.
PORTUGAL. Assembleia da República. Projeto de Lei 4/XIV/1. 25 out. 2019. Define e regula as condições em que a antecipação da morte, por decisão da própria pessoa com lesão definitiva ou doença incurável e fatal e que se encontra em sofrimento duradouro e insuportável, não é punível. Disponível em: https://www.parlamento.pt/ActividadeParlamentar/Paginas/DetalheIniciativa.aspx?BID=43947. Acesso: 27 jun. 2023.
SÁ, Maria de Fátima Freire de; MOUREIRA, Diogo Luna. Autonomia para morrer: eutanásia, suicídio assistido, diretivas antecipadas de vontade e cuidados paliativos. 2. ed. Belo Horizonte: Del Rey, 2015.
SANTOS, Lina. Morreu João Semedo, “um homem extraordinário”. Diário de Notícias, 17 jul. 2018. Disponível em: https://www.dn.pt/poder/morreu-joao-semedo-antigo-lider-do-be-9602096.html. Acesso em: 22 jun. 2023.
SANTORO, Luciano de Freitas. Morte digna: o direito do paciente terminal. Curitiba: Juruá, 2011.