Ao aprovar o seu novo Código Penal, recentemente, a Bélgica reconheceu, de forma inédita, o ecocídio como crime nacional e internacional.
No âmbito nacional, o crime de ecocídio se destina a punir os casos mais graves de degradação ao meio ambiente, o que se aplica aos indivíduos que ocupam postos de tomada de decisão e às corporações, com punições que podem chegar a 20 anos de prisão e indenizações em torno de mais de 1 milhão de Euros.
Além disso, a Bélgica também reconheceu, de forma inédita, o ecocídio como crime internacional, ao lado dos crimes de genocídio, dos crimes contra a humanidade, dos crimes de guerra e de agressão, anteriormente previstos em sua legislação interna.
A postura da Bélgica se coaduna com a Diretiva da União Europeia sobre Crimes Ambientais, recentemente revisada e que está prestes a ser formalmente acatada, o que gerará a obrigação dos Estados-membros adaptarem suas legislações internas no mesmo sentido. Por isso, a Bélgica está a um passo a frente dos demais países nessa discussão, pois já se adiantou e adaptou a sua legislação à Diretiva em questão. Nesse contexto, é uma alegria observar que o tema foi objeto de análise pela Profa. Claudia Loureiro na primeira edição do Curso de Direito Europeu, da Cátedra.
Assim, a Bélgica lidera o debate internacional a respeito do reconhecimento do ecocídio como crime internacional pelas legislações nacionais, o que é um grande avanço e fomenta um movimento internacional de revisitação da litigância climática nos países da União Europeia, dando continuidade aos casos que já se anunciaram na Corte Europeia como o da Suíça e o de Portugal.
A atitude da Bélgica tem significativa influência na evolução do Direito Internacional, contribuindo para a ressignificação de alguns institutos jurídicos, tais como a jurisdição universal, os interesses da humanidade, a litigância climática, bem como para a interpretação do Estatuto de Roma e de sua jurisdição e competência.
De início, é importante esclarecer que o ecocídio pode ser considerado como o crime cometido contra o meio ambiente com consequências desproporcionais e devastadoras para a natureza e para o bem-estar do ser humano. Sobre o tema, Loureiro já anunciou, em seu recente artigo publicado, Ecocídio perante o Estatuto de Roma, que o reconhecimento do ecocídio como crime internacional pode se dar em duas vertentes, tanto no âmbito nacional, como no âmbito internacional. Ademais, a consideração do ecocídio como crime internacional comporta duas vias, ou seja, seu reconhecimento crime contra a humanidade e como crime conexo ao genocídio, enquanto não acontece a revisão do Estatuto de Roma para inserir o ecocídio como o quinto crime contra a paz. (LOUREITO, Claudia. Ecocídio perante o Estatuto de Roma. Revista de Direito Internacional, vol.20, n. 2, p. 344-374, 2023).
Assim, enquanto não se aprova a inclusão do ecocídio como o quinto crime contra a paz no Estatuto de Roma, existem dois caminhos para a punição do ecocídio como crime grave contra os interesses da humanidade, ou seja, como crime contra a humanidade e como crime conexo ao genocídio. A primeira hipótese demanda a releitura dos elementos caracterizadores dos crimes contra a humanidade e a aplicação da norma em branco, encartada na letra K, do n. 1, do artigo 7º, do Estatuto de Roma, regra de aplicação exemplificativa, que anuncia a possibilidade de se considerar outros atos como crimes contra a humanidade. A segunda hipótese possibilita a punição do ecocídio como crime conexo ao genocídio, uma vez que a destruição física de uma determinada etnia decorre de um processo interseccional de atos que se conectam entre si, abrangendo tanto o genocídio cultural como o físico, conforme artigo 6º do Estatuto de Roma.
Nesse sentido, entende-se que a atitude da Bélgica pode funcionar como pressão para que o Tribunal Penal Internacional atue nos casos envolvendo o ecocídio, punindo-os como decorrência dos crimes contra a humanidade ou como conexo ao genocídio, conforme explicado acima.
Um outro aspecto a se considerar é a contribuição do caso da Bélgica para a compreensão da jurisdição universal a ser exercida com primazia pelos Estados. Nesse caso, ainda é importante destacar que a postura da Bélgica se coaduna com o direito de todo Estado exercer, com primazia, a jurisdição universal para punir e rechaçar os crimes de lesa humanidade, ou seja, os crimes mais graves contra a essência da humanidade.
A respeito, Loureiro também ressaltou em artigo científico publicado, que a jurisdição universal pode e deve ser exercida como uma forma de conformar o direito dos Estados que são sub-rogados da humanidade no combate aos crimes que ferem a sua essência. (LOUREIRO, Claudia. Jurisdição universal: caixa de pandora ou o caminho para a realização dos interesses da humanidade? Revista de Direito Internacional, vol. 19, n. 2, p. 213-243, 2022).
Nesse caso, o ecocídio, ao se apresentar como tema de interesse da humanidade, também a ofende em sua acepção mais ampla, humankind, uma vez que todo crime contra o meio ambiente também é um crime contra toda a humanidade. Assim, a legislação belga fomenta o debate a respeito da ressignificação do conceito de humanidade e de seus interesses, temas que demandam profunda compreensão e debate da comunidade internacional atualmente.
Vale ressaltar que o exercício da jurisdição pelo Tribunal Penal Internacional é complementar e deverá incidir, excepcionalmente, caso os Estados não queiram ou não possam exercer, com primazia, a jurisdição universal para punir os crimes mais graves cometidos contra a essência da humanidade. (LOUREIRO, Claudia. A jurisdição universal do Tribunal Penal Internacional e o deslocamento forçado do povo Rohingya: o caso Myanmar v. Bangladesh do TPI. Revista Direito, Estado e Sociedade, n. 59, p. 145-171, 2021).
Dessa forma, a recente legislação belga conecta-se a um dos princípios basilares do Estatuto de Roma, que informa que sua atuação deverá ser complementar ao exercício da jurisdição pelos Estados.
A postura da Bélgica é louvável e merece ser reconhecida como uma importante iniciativa no sentido de se concretizar o ecocídio como crime internacional, pois conjuga jurisdição universal no contexto do ordenamento jurídico nacional, o que é um avanço, por um lado, mas que também, por outro lado, decorre de outras iniciativas da Bélgica em exercer a jurisdição universal anteriormente, como se deu no caso Yerodia, apreciado pela Corte Internacional de Justiça.
Além disso, a iniciativa da Bélgica motivará outros Estados a agirem de forma semelhante e será um grande incentivo ao reconhecimento do ecocídio como quinto crime contra a paz pelo Estatuto de Roma e como genocídio ou como crime contra a humanidade pela jurisprudência do Tribunal Penal Internacional.
Apesar da ansiedade que a nova legislação belga provoca, é preciso aguardar seus desdobramentos principalmente no sentido de se constatar se o Tribunal Penal Internacional trilhará os caminhos anunciados, desafiando a si mesmo, enquanto instituição, para desempenhar o seu papel no contexto da justiça de transição para a ressignificação dos interesses da humanidade, ou se continuará chancelando o discurso global e universalizante que segue o percurso do centro para periferia, corroborando o antropocentrismo e a subalternização da humanidade aos interesses econômicos.
Quem tem preferência nessa história: a humanidade ou o interesse econômico? A resposta imediata é obvia, mas, a médio e a longo prazo, os interesses da humanidade falarão mais alto e ditarão a atuação dos tribunais e das instituições internacionais no sentido de preservar a própria essência da humanidade.
Loureiro termina a sua pequena intervenção registrando a imensa satisfação de ver sua pesquisa sobre o tema, realizada desde 2018, surtir efeitos na comunidade internacional atualmente.
“Comecei falando sobre Direito Cosmopolita em 2018 quando publiquei o meu primeiro artigo sobre a jurisdição do Tribunal Penal Internacional. Em seguida, publiquei o meu artigo sobre jurisdição universal e, por fim, o artigo sobre o Ecocídio. Sinto-me no direito de festejar uma pesquisa que é realizada com dedicação e com comprometimento, que segue uma linha e que tem como base e fundamento os interesses da humanidade. É dia de comemorar!”
Isso nos leva a concluir que ter alcançado a Coordenação da Cátedra Jean Monnet não foi acaso, mas decorreu de um percurso de trabalho e dedicação à pesquisa. A escolha de um dos eixos de pesquisa do Projeto Global Crossings, ecocídio, também não foi um acidente, mas fruto de um trabalho de perseverança, de resiliência e de autodeterminação. Apesar dos desafios, a Profa. Claudia sempre foi fiel às suas teses e ideias, o que é um conforto diante da notícia da Bélgica.
Isso tudo corrobora a Cátedra Jean Monnet, da Universidade Federal de Uberlândia e a valida perante a comunidade internacional como um centro de produção científica de vanguarda.
Claudia Loureiro
Coordenadora da Cátedra Jean Monnet
Unviersidade Federal de Uberlândia
Global Crossings Project